PEC das domésticas: uma questão também feminista de ampliação a direitos para as mulheres


Este tema tem sido amplamente debatido desde a aprovação da proposta de emenda à Constituição (PEC) que estende aos empregados domésticos todos os direitos dos demais trabalhadores regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Foram 66 votos favoráveis e nenhum contrário.
Por que falar de direitos ampliados às mulheres? Não é de hoje que as tarefas domésticas são delegadas às mulheres. Tarefa esta somada a sua jornada de trabalho fora de casa, o cuidado com os filhos e  a manutenção da casa, seja ela mesma executando ou ainda supervisionando as atividades repassadas e executadas por outra mulher que atende pelo título de empregada doméstica.
Segundo a antropóloga Jurema Britis estas mulheres correspondem a mais de 7 milhões de trabalhadoras domésticas no País, ou seja, este número revela quantas mulheres executam este tipo de trabalho, que na nossa sociedade patriarcal não é tido como um trabalho, mas sim como uma atividade de responsabilidade feminina e “inata” as mulheres desde sempre. Este lugar imposto e construído socialmente para nós mulheres diz muito sobre o que está sendo debatido com a PEC das domésticas, pois se trata de um passo alargado para mudanças na estrutura de dominação e exploração da força de trabalho de mulheres e um processo importante para reflexão deste lugar de servidão feminina presente desde a escravidão de negras e indígenas em nosso país.
Mudar a relação entre patrão/oa e empregada vai além de garantir direitos trabalhistas, está amplamente relacionada com a subjetividade da relação estabelecida entre estes atores, relação esta hierárquica, perpassada por afeto, confiança e favores não passíveis de remuneração, engendrando um círculo de dependência entre patrão/oa e empregada permeada por sentimentos que estão, na verdade, relacionados à servidão e não a prestação de um tipo de serviço, de trabalho amparado pela lei.
Segundo Britis “para um salário mínimo, será um custo de 96 reais a mais no custo da trabalhadora por mês. Não é uma coisa absurda, se gasta muito mais quando sai para beber cerveja”, portanto  não se trata de dinheiro. Se trata  de colocar em xeque este sistema confortável de exploração e submissão de mulheres a um serviço pesado e mal remunerado que favorece o contratante que tem a sua disposição alguém que satisfaça suas vontades, seja servindo um chá no meio da noite, embalando o filho que chora -  mesmo não sendo de sua responsabilidade, alguém que acorda mais cedo e busca o pão quentinho para o café da manhã, que passa impecavelmente suas roupas, ordena a casa e a deixa apresentável para a família e para os outros, um lugar limpo e ordenado que diz muito sobre você e a necessidade de se apresentar assim: “limpo e organizado” para uma sociedade “limpa e organizada”.
Este tema sempre me incomoda, pois não vejo como me desvencilhar das amarras da criação a qual eu e a maioria das mulheres fomos submetidas, me vejo sempre preocupada em deixar minha casa apresentável aos outros. Minha avó conta com orgulho para a minha companheira na mesa durante o almoço: “a minha neta quando tinha 2 anos pegava o pano e passava na geladeira para a me ajudar, e servia sua mãe desde pequena quando ficou doente, sabe cuidar da casa como ninguém!”. Cozinho, lavo, passo, limpo e ordeno muito bem uma casa. Aprendi o oficio como podem observar na fala de minha avó, desde muito pequena, entre meus brinquedos tinha o fogãozinho, as panelinhas, a casinha que meu avô fez no quintal pra mim e dentro havia tudo em miniatura que representava o privado – a casa- o lugar que estava sendo designado a mim.
 Hoje cursando ciências sociais e prestes a me formar não consigo deixar de me recordar como foi difícil o caminho até aqui. Foram 10 anos de subempregos com acúmulos de funções, com salários desiguais executando a mesma função que um homem, de bolsas de permanência na universidade que te obrigam a cumprir horas de trabalho tapando buracos da instituição precarizada do ensino superior público. Na minha primeira bolsa na secretaria de pós-graduação em enfermagem na UFSC fui ensinada como tinha que servir a bandeja de café e biscoitos variados para a reunião das professoras, como parte das tarefas a serem desempenhadas para o meu aprendizado acadêmico. Hoje as bolsas de permanência estão mudando tanto na UFSC quanto na UNICAMP onde estou hoje, somos alocados em bolsas relacionadas a projetos da área do curso. Porém, a reprodução deste sistema de tarefas domésticas e a exploração daqueles que estão em posto mais elevado está presente também no espaço de produção de conhecimento – a Universidade - que não se isenta reproduzir a manutenção de mulheres em funções consideradas de baixo prestígio como a limpeza, com baixos salários e ainda pedindo os tais favores que estas são obrigadas a fazer para não perder o emprego, assim como a empregada doméstica que também é obrigada a executar favores nos lares das classes médias e altas da sociedade brasileira.
Que a PEC das domésticas não venha somente avançar no sentido de direitos, mas que também venha por a mesa esta questão de classe que aprisiona mulheres para a manutenção de privilégios de patrões/oas, para que empregadas domésticas possam ser tratadas em pé de igualdade nas relações de trabalho não como um membro da família que dorme no quarto dos fundos e por ser tão “querida” a família não precisa ser remunerada com outros trabalhadores. Que estas mulheres tomem em suas mãos esta conquista legal e exijam que seus direitos sejam garantidos, que a PEC em alguma medida possa mudar o sentimento destas empregadas domésticas para que os limites da naturalização desta função desde a infância possa ser transformado e atribuído sim como um trabalho. Por fim que a PEC das domésticas avance no espaço privado do lar, mesmo este ainda sendo o lar do outro para que mudanças aconteçam, estas são também questões feministas!
Caroline Gorski
Graduanda em Ciências Sociais - Unicamp
Militante do Coletivo Feminista da Unicamp



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